Uma questão de técnica
O problema todo começou em janeiro, quando Cecília, a então cortadeira da minha confecção, depois de um ano de vou-não vou, resolveu que se mudaria de volta para Atílio Vivacqua, aprazível localidade com 7 mil habitantes no interior do Espírito Santo, porque assim desejava o senhor seu marido, mesmo que nem ela, nem os dois filhos, estivessem a fim.
Tomamos o cuidado de selecionar uma substituta com um mês de antecedência, que foi treinada pela Cecília e era tecnicamente competente, mas que surtou um dia em que foi chamada a atenção por conta de um erro primário que cometeu, largou tudo pra lá e não quis mais botar os pés ali nem pra receber, preferiu ir lá no Ipiranga, no escritório do contador.
Desde então estamos numa labuta para arrumar um substituto. Alguém que entenda de corte, mapeamento de malha, até aí nem é tão difícil. A coisa pega quando é necessário modelar uma peça nova, saída da minha imaginação e vendida para o cliente como a solução ideal. Como não lançamos duas coleções por ano, não há como ter uma modelista apenas para esse fim, o ideal é que tenhamos uma cortadeira que também saiba modelar. Tarefa quase impossível nos dias de hoje, em que há uma faculdade nova em cada esquina.
Mas o que têm as faculdades a ver com isso?, vocês devem estar se perguntando. Eu explico.
É ótimo que todo mundo tenha acesso ao ensino superior e posso citar vários exemplos de pessoas que saíram do nada, tiveram uma chance na vida e se deram bem. São exceções. É fato que a maior parte das faculdades que abriram recentemente são de fundo de quintal e captam alunos seja de que maneira for, quase sempre de classe média baixa ou baixa.
Acontece que era bem esse pessoal que, não tendo acesso facilitado ao ensino superior, formava-se nos cursos da área técnica. E quase sempre saíam dos cursos com emprego garantido, porque a absorção de mão-de-obra técnica é alta, e um bom técnico vale muito. Tente você, engenheiro, construir um prédio de 30 andares sem ter consigo um bom técnico pra fazer a coisa andar e colocar a peãozada pra seguir as instruções. Tente você, médico, fazer um transplante de fígado sem ter ao seu lado um excelente instrumentador.
Tente você, dono de confecção, ter um cortador que não entende da malha, não sabe mapeá-la de maneira a tirar o máximo de proveito, não tem noção de reaproveitamento das sobras, não faz idéia de que diabos você está falando quando descreve um modelo Frankstein de casaquinho, com pedaços de idéias daqui e dali.
Atualmente há uma enorme deficiência de profissionais da área técnica no Brasil, e cada vez mais pessoas se formando em faculdades que nada ensinam, entrando no mercado de trabalho para competir com alguém que fez FGV, Usp, Metodista, Mackenzie, que tem acesso a livros, viagens, outras culturas, que estudou em colégio de ponta a vida toda. Esse profissional, cuja formação escolar o permitiria ser um excelente técnico, frustra-se em saber que seu diploma não vai lhe garantir um lugar no mercado de trabalho. Muitas vezes, ele não deseja voltar para a função técnica que exercia antes, na qual ele podia ter se aprimorado por meio de cursos, porque afinal de contas agora ele é um profissional acima daquilo.
Como o diploma de uma faculdade traz um status sonhado, dificilmente encontra-se por aí alguém como o Luiz, meu ex-cabeleireiro que se transferiu, há uns 4 anos, do salão daqui do bairro para o Studio W (nem preciso dizer o motivo pelo qual ele virou meu ex-cabeleireiro né?). Comunicando a mim e ao meu então marido a mudança de emprego, ele confidenciou que, ali no salão onde trabalhava, sua retirada nos meses de maior movimento era de R$ 7 mil, e que no W ele teria uma média mensal de R$ 12 mil.
Luiz fazia academia na Runner, estudava inglês, viajava para conhecer as tendências novas de tintura e corte, estudava, fazia cursos. Tudo dentro da profissão dele. Técnica, mas que garantia a ele um rendimento que muito pós-graduado não tem por aí.
Ou como a Soraia, filha de uma ex-cortadeira (a primeira que tivemos), que começou costurando em uma empresa de uniformes para hotelaria, fez curso de corte e modelagem, passou a cuidar dessa área e hoje, quando há um hotel importante fora de São Paulo como cliente (como vários dos resorts da Costa do Sauípe, por exemplo) é ela quem é enviada pela empresa para comandar tiragem de medidas, checar as necessidades do hotel etc. Certamente está muito mais bem colocada, com o emprego muito mais garantido e com muito mais chances de continuar crescendo na profissão do que se tivesse cursado Administração na Faculdade do Taboão da Serra.
Hoje, na confecção, tenho duas funcionárias fazendo faculdade. Uma faz Pedagogia; a outra, Turismo. Ambas na Uniban. E apesar de me sentir orgulhosa delas, porque elas dão um duro danado e ainda assim são cheias de entusiasmo pelo curso, temo pelo futuro, porque as chances delas arrumarem um emprego melhor depois de formadas são muito pequenas. Penso que talvez elas podiam se dedicar a uma profissão na área de confecção, na qual elas já estão há bons 3 anos, e usar o conhecimento adquirido na prática para serem uma modelista de primeira, uma chefe de produção, uma profissional de vendas, algo assim.
Tudo isso parece muito preconceituoso, e eu mesma acharia que sim, na minha fase pré-empresária. Mudei de opinião depois que constatei que, ao contrário do que se imagina por aí, um técnico competente é muito mais do que um tarefeiro.
Maior prova disso é que Cecília, a cortadeira que deu origem ao post, ligou de Atílio Vivacqua manifestando vontade de voltar pra São Paulo. E eu e minha sócia já oferecemos mundos e fundos que estavam ao nosso alcance para que ela venha sim, e logo.
Por favor...
Pelamordedeus!!!!
4 Comentários:
Clau,
Muito bom o texto. É de se pensar. Agora, que a profissão de nível técnico, de maneira geral, também é mal reconhecida e mal remunerada, ah, isso é.
Beijos,
Ju
entre ser um técnico mal remunerado e ser um profissional de nível (?) superior formado no fundo de quintal certamente desempregado, ainda acho que a escolha mais acertada é a primeira.
Sem contar o sacrifício de pagar 4 ou 5 anos de uma faculdade sofrível, um valor que, no caso das meninas da confecção, corresponde a mais da metade do salário delas.
Lembro sempre do Seu Amaral, o dono da Santa Marcelina, dizendo que uma menina que trabalha no balcão dele ganha mais que uma caixa de banco. Mas é assim mesmo: muita gente prefere ser rabo de baleira a ser cabeça de sardinha....
Oii,
Vale comentar post antigo? Então vamos lá ...
1)não é preconceito, mas essas universidades são verdadeiros "caça-níqueis" e não preparam os alunos para o mercado de trabalho. Vendem ilusões.
2) Atílio Vivacqua !!!! Esse nome é um trauma de infância que pensei nunca conseguir superar. Meus avós tinham um sítio nessa cidadezinha, onde eu passava todas as férias. Nada contra a cidade, o problema era dizer ONDE eu tinha passado as férias e aguentar os coleguinhas perguntando "atirou onde ???"
Postar um comentário
Assinar Postar comentários [Atom]
<< Página inicial