Nesta semana que entra, haverá um eventinho aqui em casa. Nada demais, uma degustação de vinhos com pouquíssimas pessoas, uma vez que pretendemos sentar todos em volta da mesa. Parte dos convidados assumirá a cozinha, cada um com sua especialidade. O cardápio, até agora, constitui-se de salmão com molho de mostarda e mel, risoto de limão siciliano, saladinha de entrada com molho quente. Para petiscar com prosecco enquanto o jantar não fica pronto, parmesão com mel e balsâmico. A sobremesa ainda não está definida, um dos convidados irá trazê-la, mas ainda não tem ideia do que será.
Bom né?
Eu, que adoro uma festinha, já comprei um tecido para fazer uma toalha nova para minha mesa, e guardanapos combinando - falta só o tecido do forro dos guardanapos - e uns pratos menores, fundinhos, para servir de saladeira, que eu não tinha e estava muito
precisada. Pratos ok, travessas idem, hoje fui dar uma olhada nos copos e principalmente taças, para ver se tinha o que iríamos precisar ou se eu ia
ter de comprar alguma coisinha nova e diferente.
Abri o armário de portas de vidro da cozinha, onde ficam as taças daqui de casa - gente, atenção, não é uma cristaleira chiquérrima, é somente um armário com as taças ali arrumadinhas - e comecei a tirar uma a uma de lá. Eu tenho um joguinho de cristal que comprei certa feita quando, ainda casada, o dono da empresa onde meu então marido trabalhava veio jantar aqui conosco, atraído pelo meu bacalhau. Desde então, só uso este joguinho em ocasiões especiais, não por algum motivo específico, mas tão somente porque elas não podem ser lavadas em lava-louça e devo confessar que minha vida social deve-se pelo menos 50% à existência de uma lava-louças daquelas grandes, que cabe tudo dentro e deixa a cozinha arrumada em 15 minutos.
Aí, cada vez que penso em usar essas taças, penso que depois terei de lavá-las com mãos de fada, o que não é bem o meu caso, já que quebrei uma delas logo que cheguei em casa, lavando-as para tirar o pó da loja. Desisto e acabo usando as outras, mais pé-de-boizinhas, que vão alegremente tomar banho quente de Brastemp.
E aí, separando as taças, descobrindo que tenho uma quantidade enorme de flute para prosecco, fruto das inúmeras cestas de Natal, café da manhã, aniversário e sei-lá-mais-o-quê que meu então marido recebia. Tem um joguinho de 6 que foi criado só juntando as que vinham nas cestas, fora as outras, diferentes. Tem umas 15, fácil.
Encontrei também reminiscências de umas tacinhas que ganhei de presente de casamento, 20 anos atrás. Lembro até quem as deu para mim, foi a Teresa, colega de classe da UnB. São fofas, com uns raminhos desenhados. De um conjunto de 18 tacinhas - 6 de vinho branco, 6 de vinho tinto, 6 de champagne - sobraram 4 de champagne, umas 2 de vinho tinto e talvez 2 ou 3 de vinho branco. LegItimas anos 80, compradas na Mesbla, umas relíquias!!!!
Mas o que me deixou mais cheia de lembranças e nostalgia foi um conjunto de jarra e seis copos que estava guardado beeemmm lá em cima, de onde tirei e lavei com o maior carinho para novamente guardá-lo depois, mas em algum lugar onde eu possa ver com mais frequência e tê-lo mais à mão.
Quem me deu este conjuntinho foi a tia Cida, pouco tempo depois que me casei. Tia Cida era tia avó do meu ex-marido. Manja aquela tia que todos os sobrinhos têm pavor? Que toca o horror na molecada, que não deixa fazer isso e aquilo, que dava chinelada nos moleques quando eles aprontavam, enfim, o terror de Vila Isabel, onde morou quase a vida toda a avó do meu ex-marido, numa casa imensa, construída hâ quase 100 anos, que vivia cheia de gente da família, sobrinhada e tudo mais.
Conheci tia Cida viajando pra o Rio de Janeiro para as bodas de ouro de Dinda e tio (Wal)Demar. Eu tinha na ocasião 15 anos, morava em Brasilia, namorava meu ex-marido há uns seis ou sete meses quando fui convidada para o evento que reuniria todas as gerações da família, e mais seis meses. Foi também a primeira vez que viajei de avião na vida.
Mal cheguei na casa da vó Galdina, e recebi a recomendação: cuidado com a tia Cida, que ela costuma ser bem desagradável com as namoradas dos sobrinhos, não ligue se ela for grosseira com você etc. Juntando essa advertência com as informações que eu já havia tido ao longo dos meses passados, eu tremia os joelhos quando finalmente fui apresentada à temível tia Cida.
Estava calor e um movimento intenso na cozinha da casa, porque, após a missa numa igreja linda no centro do Rio, que não me lembro mais qual foi, haveria uma festa para não sei quantas pessoas na casa da Vó Galdina. Quem conhece a zona norte ou o subúrbio do Rio de Janeiro sabe bem do que estou falando: não tem essa coisa de buffet, contratar gente pra isso ou praquilo. A mulherada da família toda se enfurna na cozinha preparando a comidaiada, os homens se encarregam das bebidas geladas, um grupo leva logo os instrumentos para rolar um samba a festa toda, aquela bagunça, aquele mafuá as pessoas te tratando como se te conhecessem desde a infância... divertidíssimo!!!
- Cláudia, pega aqui essas batatas e essa faca e senta aqui na mesa - disse tia Cida empurrando em minha direção uma bacia cheia de batatas descascadas para cortar em cubinhos para a maionese. Estávamos as duas na copa da casa, uma das partes mais fresquinhas do casarão, em pleno março de calor intenso no Rio, onde havia várias janelas por onde entrava um ventinho alentador. - Fica aqui me ajudando porque senão vão te arrastar para a cozinha e tá um calor danado lá dentro.
E assim começou me relacionamento com tia Cida. Cada vez que aparecia alguma das integrantes da tropa culinária do evento sonhando em me pedir alguma coisa, tia Cida já pulava na frente e dizia que eu a estava ajudando e que não era pra eu sair dali. Picando as batatas, as cenouras, os chuchus, ficamos ali conversando no fresquinho, ela me perguntando sobre o colegio, minha família, o que eu gostava de fazer. Com a família do meu ex-marido inteira sem entender tia Cida me adotando e me protegendo daquela maneira, desde o primeiro minuto, já que ela tinha maltratado absolutamente todas as mocinhas casadoiras que um dia entraram na família.
Anos depois, me casei e vim morar em São Paulo. Tia Cida também morava aqui, com o marido, tio Julinho, que trabalhava na Varig. Iamos com frequência almoçar na casa deles, nos víamos nos aniversários, Natal, Ano Novo, e até nos aniversários dos filhos de uma vizinha do prédio dela cujo marido a abandonara com 3 filhos e que eles dois adotaram como netos - eles tinham somente um neto, que morava no Rio com a mãe, filho do único filho deles, que era o xodó da vida dos dois. Penso que adotar aquelas 3 crianças como netinhos era a compensação pela ausência do neto, eles faziam por eles o que fariam pelo menino, caso ele morasse perto.
Numa dessas ocasiões, tia Cida me chamou no quarto dela e de dentro do armário tirou uma caixa de papelão velha pacas, toda remendada com durex. Dentro da caixa, o jogo de jarra e copos que mencionei, com umas bailarinas desenhadas no efeito de vidro fosco com vidro transparente.
Ela me deu o jogo, contando que tinha ganhado de presente de casamento, e que agora era meu. Que ela queria que eu ficasse com ele. Fiquei comovidissima com o presente, ainda mais que o filho dela estava no segundo casamento, e nenhuma das duas noras havia sido merecedora de tal deferência, nem nenhuma esposa dos sobrinhos, ou alguma sobrinha, ou alguma sobrinha-neta.
Não é um jogo chique, não é de cristal tcheco, não é uma série rara de alguma coleção. É apenas uma jarra com seis copos, mas que me foram dados por alguém que inexplicavelmente gostou de mim desde que me viu pela primeira vez, que cuidou de mim durante minha gravidez com enorme carinho, que tinha pela Isabela um carinho e um cuidado que só avós e, no caso, bisavós muito amorosos têm.
A terrível e temida tia Cida era, para mim, a querida tia Cida. Hoje me lembrei tanto dela, lavando os copos, que resolvi deixá-los em uma prateleira mais baixa, em outro armário que abro com mais frequência, porque ela merece que eu cuide do seu amado jogo de jarra e copos com todo o cuidado do mundo, para que um dia ele seja da Bela, carregando toda essa história tão bonita que acabei de lhes contar.