A morte de alguém em uma cidade muito pequena é sempre a notícia mais importante do lugar. Em especial se o morto em questão for de uma das famílias que fundaram a cidade. As pessoas deixam seus afazeres de lado para render as últimas homenagens àquele que esteve presente em suas vidas durante tantos anos, ainda que tenha sido só na base do bom dia boa tarde boa noite.
Foi assim na sexta-feira em Demétrio Ribeiro(ES), no enterro da minha avó.
Demétrio Ribeiro é um lugarejo de uma única rua, perto de João Neiva. Foi lá que, no começo do século passado, algumas famílias de imigrantes italianos se estabeleceram para trabalhar na lavoura: os Sarcinelli, os Rampinelli, os Carrareto, os Campagnaro, e nós, os Baiocco.
Espalharam-se pelas terras da região e viviam de cultivar sua roça. As crianças tinham duas escolas à disposição, ambas feitas de tijolos feitos a mão: a escola de cima, e a escola de baixo, porque a única rua da cidade é uma ladeira.
Foi naquelas bandas que José Herman Bizzi conheceu Maria Madalena Depianti. Ele, filho de um fazendeiro rico de café; ela, moça pobre da região. Do namoro proibido pela família dele, nasceram duas filhas: Linda e Maria, minha avó. Depois, ele se casou com outra, ela se casou com outro, tiveram muitos filhos de cada um dos lados, de forma que minha avó tinha vários irmãs e irmãos.
Maria Depianti casou-se com Guilherme Gregorio Baiocco, filho de Giocondo Baiocco e Ida Carrareto, posteriormente Baiocco também, e tiveram filhos, o primeiro deles uma menina, minha mãe. Que nasceu e criou-se ali perto de Demétrio Ribeiro, onde estudava na escola "de baixo".
Perto da casa da minha avó, moravam os Sarcinelli, a família mais rica da região, a que tinha a casa mais suntuosa para os padrões da época, primeira roça a ter luz elétrica nos meados da década de 70. Moravam também os Carrareto, primos por parte de mãe do meu avô. Os Campagnaro, inclusive minha amiga de férias, Bernadete Campagnaro, com quem me encontrei no enterro de minha avó, que ainda mora lá. E os Bollis, família da minha amiga de férias, Adriana, cujos pais foram ao funeral. Os Mazega, que tinham 3 filhos e pela vontade do mais velho, a d. Isaura teria se transformado em minha sogra, caso eu quisesse, lá pelos meus 10 anos de idade, ter namorado um menino loirinho que usava uns óculos de armação preta com lente verde-garrafa.
E foi no enterro da minha avó que eu descobri que ela não era só minha avó. Era também prima do Bento, tia do Zé Amaro, da Rosa, da Cuca. Irmã do tio Welfo, do tio Washington, da tia Edwiges e de tantos outros dos quais nem me recordo os nomes.
Todos presentes, vindo de diversas partes do Estado, dispostos a subir a longa ladeira de terra que leva ao topo do morro onde fica o cemitério. A qual não se sobe de carro, a menos que você tenha um jipe com tração 4x4 e seja muito bom de braço. E ainda assim, somente
você subiria de jipe, talvez um velhinho mais velhinho fosse contigo, porque homenagem mesmo é subir a pé, seguindo o caixão, com os filhos, netos e os amigos mais chegados se revezando para carregá-lo, num último gesto de amor e consideração com quem se compartilhou dificuldades, alegrias, boas e más notícias.
E no cemitério, a reprodução do que se via nas roças da região: as famílias. O túmulo dos Sarcinelli, o dos Rampinelli, o dos Carrareto, o dos Baiocco...
Mais do que um funeral, o enterro da minha avó foi uma reunião de família. Absolutamente todo o mundo que levava o sobrenome Baiocco (que foi grafado Baiôco na certidão da minha mãe, uma vez que ela nasceu em 1941, meio da segunda guerra, na qual os italianos eram os inimigos) e que pôde comparecer fez questão de ir e presenciar os sinos da igreja de Demétrio Ribeiro badalando no momento exato do sepultamento, a cidade despedindo-se.
Depois disso, passamos na casa da roça, que não está abandonada porque um dos meus tios cuida de preservar o lugar. E lanchamos todos juntos, uns sandubas improvisados, a primaiada toda junta tomando guaraná Coroa (típico do ES, tomar de outra marca só se não tiver o Coroa), cafezinho na casa de d. Isaura Mazega, com rosquinhas salgadas, que nos deu cacau pra gente levar, vão com Deus, cuidado na estrada etc etc.
Para nós, que vivemos na cidade grande, é uma situação surreral. Para eles, é vida que segue. Porque a d. Mariquinha Baiocco não morreu; apenas descansou.